O fracasso escolar e rótulo dos alunos “ditos normais”



Um dos compromissos mais radicais que se pode assumir em educação é o de “educar todos”. A escola tal como a conhecemos se organizou teoricamente nesse princípio, mas, na realidade, sempre falhou em praticá-lo. A escola pública demorou muitos anos até chegar a todas as crianças. Lembro que não há muito tempo, em Portugal, ainda se lutava pelo acesso, sobretudo aos patamares mais altos da escolaridade obrigatória. Garantida a entrada, levantou-se outra questão que poderia ser assim resumida: todos os estudantes podem entrar, mas quantos podem sair com sucesso?

A procura pela resposta dessa questão iluminou os obstáculos no caminho: muitos alunos não se mostravam capazes de progredir no mesmo ritmo que o sistema lhes exigia. Por isso, reprovavam. Outros, desencorajados ou empurrados, saíam da escola sem concluir a escolaridade considerada essencial e básica. Em Portugal ainda lutamos essa batalha: detemos tristes recordes de reprovações e nossa taxa de abandono escolar nos coloca em más posições nos rankings internacionais. A que se deve essa situação?

 

 

Razões do fracasso e abandono escolares

Um dos axiomas que se aprende quando nos interessamos pela análise dos sistemas educativos é que as causas e consequências dos fenômenos que pretendemos estudar são sempre múltiplas e inter-relacionadas. Algumas pessoas mais desprevenidas sonham com o fator “x” que inevitavelmente produzirá o efeito “y”. Esse tipo de pensamento irreal é frequentemente chamado de “engenharia social”, a ilusão de que sistemas humanos complexos poderiam ser influenciados e resolvidos por meio de medidas simples e singulares. Feliz ou infelizmente não é assim: fenômenos socialmente complexos como a educação só se resolvem com ações em diversas áreas, estendidas no tempo.

Dessa forma, são múltiplas as razões a que se devem os resultados precários no combate ao fracasso e abandono escolares. Por exemplo, pesquisam recentes feitas no país comprovam uma relação entre o sucesso escolar e a escolaridade dos pais — sobretudo da mãe — das crianças. A esse fator podemos somar a desigualdade social, as assimetrias entre os territórios, os valores que as famílias dão à escolarização, o apoio dado aos estudantes, a forma como se encara o currículo. Enfim, uma grande multiplicidade de fatores que interagem e se influenciam mutuamente.

De todos elementos, um deles parece ter uma importância central em todo esse processo: a escola, pela primeira vez em sua curta história de menos de dois séculos, arrisca-se a ver seus fundamentos de valores e organização serem postos em xeque. A escola tal como a conhecemos vê o estudante como um ser inacabado e imperfeito que será corrigido. Ela se organiza como se todos aprendessem tudo ao mesmo tempo e no mesmo ritmo e os agrupa com base em critérios de homogeneidade. Ela assume que a educação é, sobretudo, um processo de transmissão.

Ora, os alunos de hoje encontram-se em uma situação estruturalmente diferente daqueles de 15 anos atrás. Essa diferença se deve muito à popularização das tecnologias digitais, que permitem o acesso a fontes de informação e meios de comunicação antes impossíveis. As crianças e adolescentes de hoje não encontram na escola a centralidade de motivação e de fonte de conhecimento que encontravam antes.

 

 

Ensino homogêneo e segregação

O que a escola pode fazer diante dessa situação? Antes de tudo, a escola deve partir de onde os estudantes estão e não de onde ela considera que eles deveriam estar. Não há muito tempo, ao trabalhar com um grupo de professores, notei que eles se mostravam desanimados por que seus alunos não estavam onde deveriam estar: atentos, participativos e interessados. Se acharem que as crianças não estão adequadas, não serão capazes de ensinar. Há muitos anos, um documento da UNESCO afirmava que “não são as escolas que têm direito a certos tipos de alunos, os alunos é que têm direito à educação”.

Em segundo lugar, ela tem de acabar com a ideia de ensino para grupos homogêneos, elemento responsável pela segregação, aberta ou velada, que ainda persiste em nosso sistema educacional. Se os estudantes devem ser “normais”, aos que não são, restam os rótulos de “especiais” e “diferentes”. Essa ideia absurda — agora até se fala de “homogeneidade relativa”! — fortalece o valor que marca a má pedagogia: não ver as singularidades das crianças e adolescentes e valorizar aquilo em que são menos interessantes e mais previsíveis.

Ironicamente, um professor me dizia: “Na minha turma tenho de tudo, até alunos — coitados — que são rotulados de normais”. As escolas, e sobretudo os professores, precisam de quem caminhe ao seu lado para os ajudar a quebrar no pensamento e na prática esses mitos dos estudantes não serem o que deles se espera; isto é, não serem homogêneos. Estamos em tempo de olhar corajosamente para essas mudanças.

 

David Rodrigues é presidente da Pró-Inclusão (Associação Nacional de Docentes de Educação Especial de Portugal), diretor da Revista Educação Inclusiva e professor de educação especial. Lecionou nas universidades do Porto, de Lisboa, dos Açores e de Coimbra, em Portugal; na Universidade de Leuven, na Bélgica e na Virginia State University, nos EUA. No Brasil, já deu aulas na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Publicou cerca de 30 livros e dezenas de artigos sobre educação inclusiva para revistas. Desde junho de 2015 é Conselheiro Nacional de Educação de Portugal.

Artigo originalmente publicado no jornal Público, de Portugal, em 09/06/2017 e disponível em bit.ly/alunos-normais-david-rodrigues Site externo.





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